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Bolsonaro e Orbán, aliados na guerra contra as universidades

Presidentes de Brasil e Hungria se encontram para celebrar agenda obscurantista

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A visita de Bolsonaro à Rússia tem despertado interesse devido a um possível alinhamento político ou até militar com Putin, que está longe de ser real, dado o vínculo estreito das forças armadas brasileiras com os EUA e da própria base de apoio de Bolsonaro ser americanófila, a exemplo das Estátuas da Liberdade fakes nas lojas Havan, ícones do bolsonarismo. A ida à Rússia é, sobretudo, comercial, voltada a agrotóxicos (mas lembremos também que esse é o país do Telegram – que abriga a maior rede digital bolsonarista e que está na mira do STE –, especialista em ataques cibernéticos e que atuou com trolls e fakenews pela vitória de Trump em 2016). A viagem mais "política" esteve na segunda escala, na Hungria e Polônia. Depois da queda de Donald Trump, o premiê húngaro Viktor Orbán é um dos mais importantes e influentes líderes da ultradireita global e um dos padrinhos de Bolsonaro, que o chama de "irmão em afinidade".

Orbán foi um dos poucos líderes estrangeiros presentes na posse de Bolsonaro. Na época, o então Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, afirmou pelo Twitter que "Brasil e Hungria compartilham valores e visões de mundo", ao que Orbán respondeu "a definição mais adequada de democracia cristã moderna pode ser vista no Brasil, e não na Europa". Orbán e Bolsonaro são parceiros políticos e compartilham visões autoritárias, militaristas, xenófobas, fundamentalistas e racistas sobre o mundo e o papel de seus países, incluindo ataques à ciência, à autonomia universitária e à liberdade de pensamento.

Ilustração - recorte da pintura de George Grosz, "Os pilares da sociedade", 1926.
Ilustração - recorte da pintura de George Grosz, "Os pilares da sociedade", 1926.

A situação institucional no Brasil, apesar das tentativas golpistas de Bolsonaro e apoiadores, ainda não atingiu o mesmo ponto do "regime" húngaro, que o próprio Orbán chama de "regime iliberal" – isso mesmo, com "i". No Brasil, as instituições democráticas, mesmo sob tensão, têm funcionado e imposto limites à criação de um regime de extrema direita. As universidades públicas são um elo fundamental na garantia da democracia, da liberdade de pensamento e da ciência contra o negacionismo e, por isso mesmo, têm sido particularmente atacadas.

Além de estranguladas orçamentariamente, agências de fomento federais cortaram bolsas e verbas de pesquisa, como já comentamos em outro artigo do SoU_Ciência, ,e, desde 2019, reitores de 21 Universidades Federais foram indicados pelo presidente de forma ilegítima, desrespeitando o desejo das comunidades acadêmicas. Professores, pesquisadores e reitores também têm sido ameaçados e mesmo silenciados, com conduções coercitivas, denúncias vazias na tentativa de abrir processos administrativos e até um termo de ajuste de conduta impedindo críticas ao governo. Em julho de 2020, o jornalista Rubens Valente revelou que André Mendonça, então Ministro da Justiça, mantinha equipes de investigação sigilosas monitorando mais de 500 servidores públicos de oposição, entre eles policiais antifascistas e professores universitários.

Na Hungria, Orbán, no poder desde 2010, conseguiu fazer ainda mais estragos na batalha contra as universidades públicas e institutos de pesquisa, inserindo interventores, exilando cientistas e intelectuais e mesmo induzindo uma universidade inteira a deixar o país. O "despejo" da Universidade da Europa Central (CEU) de Budapeste para Viena, depois que o parlamento aprovou uma lei em 2017 que a declarou ilegal, evidenciou internacionalmente que as universidades e a ciência na Hungria estavam sob ataque.

A CEU é a universidade de maior prestígio do país, foi fundada pelo financista húngaro e sobrevivente do Holocausto, George Soros – acusado de globalista e mesmo esquerdista. Foi concebida durante a queda do regime comunista, com um perfil liberal para planejar o novo futuro do país como uma 'sociedade aberta' — mas nem mesmo seu perfil, orientado para o mercado, garantiu uma existência pacífica para a universidade sob o regime de Orbán.

Após protestos de rua com dezenas de milhares de manifestantes e cartas de solidariedade apoiadas por 17 ganhadores do Prêmio Nobel, a CEU assinou um acordo com o governo austríaco para mudar a maioria dos cursos para Viena. Juízes da União Europeia (UE) consideraram a ação do premiê húngaro uma "discriminação arbitrária" não compatível com a Carta de Direitos Fundamentais da UE.

Além do caso emblemático da CEU, universidades e centros de pesquisa estão perdendo autonomia em relação ao governo e intelectuais e cientistas estão deixando o país. O "regime iliberal" publica semanalmente listas de inimigos, incluindo dezenas de acadêmicos, acusados ​​de mercenários. Segundo Franklin Foer, "a Hungria já teve algumas das melhores universidades da Europa pós-comunista. Mas o governo de Orbán os esmagou sistematicamente. Seus funcionários invadiram as universidades públicas, controlando-as rigidamente.

O financiamento da pesquisa, uma vez determinado por um corpo independente de acadêmicos, agora é concedido principalmente por um leal a Orbán. Em 2019, o premiê húngaro conduziu a ‘tomada de controle’ da renomada Academia de Pesquisa Húngara, que reúne 15 institutos de pesquisa e mais de 3 mil pesquisadores, controlando o financiamento e os pesquisadores em postos-chave – supostamente para agilizar o patenteamento e reduzir os custos de pesquisa.

Como o professor e pesquisador do SoU_Ciência Rogério Schelegel já relatou, mais de duas dezenas de Universidades públicas foram ou estão sendo transferidas para Fundações controladas pelos aliados de Orbán, alcançando já 70% dos estudantes universitários no país.

Este modelo, não por acaso, é o que se pretendeu no Brasil com o projeto Future-se, em 2019,que transferiria progressivamente as universidades públicas brasileiras para a gestão de Organizações sociais (OS) ou Fundações No projeto, os novos docentes e técnicos (ou antigos por adesão voluntária) deixariam de ser servidores públicos para serem celetistas e o patrimônio de imóveis das universidades passaria a ser gerido por fundos de investimentos. O discurso "modernizador" de suposta eficiência de mercado para atender interesses públicos não apenas é falacioso, como encobre o ataque direto à autonomia das universidades e à liberdade de pensamento, de cátedra e de pesquisa.

Esse ataque, no Brasil e na Hungria, deve ser compreendido num contexto mais amplo do empoderamento da ultradireita global como ativista de guerras culturais em seus países, na definição de valores, comportamentos, ideias e políticas. Apesar de ainda mobilizarem um imaginário conspiratório de enfrentamento ao comunismo, não é esse o foco da guerra cultural no pós-guerra fria, mas a definição do que o ultradireitista Pat Buchanan chamou nos anos 1990 de luta pela "alma da nação" – o que exige batalhas no campo da educação, cultura, mídia, religião, costumes, leis etc. E definição de inimigos, sobretudo, internos.

Tanto os governos de ultradireita no Brasil quanto na Hungria, (assim como nos EUA, na Polônia e outros países, são apoiados por bases religiosas fundamentalistas. Esses grupos atacam a diversidade cultural, étnica e de orientação sexual, o ambiente aberto, progressista e cosmopolita das universidades e a produção científica de forma mais geral em nome da "nação", da "tradição" e dos "valores cristãos" – ou, no lema fascista repetido por Bolsonaro e Orbán em seu encontro: "Deus, pátria, família".

No Brasil especificamente, diante dos avanços políticos e culturais das últimas duas décadas, especialmente com o novo protagonismo negro, popular, feminista, LGBTQIA+, indígena, há uma reação moralista, branca, racista, patriarcal, negacionista e revisionista. A resposta da sociedade contra tudo isso, felizmente, está sendo intensa e impondo limites, derrubando popularidades, reconhecendo a importância da informação confiável e da ciência na definição de políticas públicas e na garantia do direito à vida.

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