O projeto acadêmico fortalece a autonomia da USP

Às vésperas do início do sexto Ciclo de Avaliação Institucional, a vice-reitora Maria Arminda do Nascimento Arruda enfatiza o papel crítico da Universidade

 15/08/2023 - Publicado há 9 meses

Texto: Adriana Cruz, Luiz Roberto Serrano e Marcia Blasques

Vice-reitora Maria Arminda do Nascimento Arruda - Foto: Marcos Santos /USP Imagens

O primeiro semestre de 2023 foi um tempo de escuta e conversas. É o que diz a vice-reitora Maria Arminda do Nascimento Arruda, presidente da Comissão Permanente de Avaliação da USP, que acaba de encerrar o quinto ciclo de Avaliação Institucional, após encontros e discussões em 53 unidades sobre os rumos da Universidade. Para falar sobre esse processo iniciado em 2018 e a importância da avaliação institucional para o planejamento estratégico da USP, ela recebeu a reportagem do Jornal da USP. Confira a entrevista a seguir.

Jornal da USP – De que forma a avaliação institucional auxilia a USP a repensar o que ela é, o que ela precisa ser, e de que maneira isso reforça a autonomia da instituição?

O quinto ciclo de avaliação institucional, que encerramos agora, foi o primeiro realizado a partir da resolução 7272, publicada em 2016, e que repensou toda a avaliação da Universidade. É um sistema de avaliação quinquenal, aprovado pelo Conselho Universitário, e que começou mesmo a partir de 2018. Esse sistema seguiu uma nova concepção: foram feitos os projetos acadêmicos das unidades, juntamente com os projetos acadêmicos dos departamentos e os projetos acadêmicos dos docentes. A ideia era que houvesse um encadeamento entre todos esses projetos, que o do docente tivesse relação com o do departamento que, por sua vez, tinha relação com o da Unidade. Esse método flexibilizou a avaliação, ao mesmo tempo que permitiu que as unidades se autoavaliassem. Esse processo é muito interessante do ponto de vista da vida acadêmica, pois se baseia na ideia da autonomia da universidade.

Qual foi a sequência?

Os projetos foram submetidos às Câmaras que foram constituídas ao mesmo tempo, também a partir da resolução 7272. Temos a Câmara de Avaliação Institucional, a CAI, e a Câmara de Avaliação Docente que, por sua vez, estão ligadas a uma comissão plenária superior, que conta com representantes das comissões estatutárias e membros das câmaras de avaliação. A ideia é termos vários ciclos, que garantam uma sequência: a avaliação institucional seguida da avaliação docente. Tivemos uma inversão disso no passado, mas daqui para a frente pretendemos manter a sequência correta, prevista na resolução 7272.

Por que tudo isso reforça a autonomia?

Porque quando as câmaras avaliam os projetos — e as câmaras são resultado de eleições da comunidade nas três áreas, além de membros indicados pela Reitoria — é a própria universidade se autoavaliando. É um processo de autoavaliação cuja existência pressupõe a autonomia acadêmica. E, ao mesmo tempo, é a construção de um debate interno sobre o processo de avaliação.

Esse processo inclusive foi elogiado por avaliadores externos, não?

Nós sempre tivemos avaliadores externos, mas antes da resolução 7272, eles participavam de maneira não muito bem definida. Nós chamamos pessoas reconhecidas em suas áreas para fazerem a avaliação institucional, depois que o relatório foi consolidado pela CAI. A ideia era também submeter a Universidade ao escrutínio de uma visão externa, pensando em um plano institucional para guiá-la como um todo. Envolve a perspectiva da gestão, claro, mas é um plano institucional que brota do processo que envolveu unidades, departamentos e docentes. Portanto, vem de baixo para cima. Nessa perspectiva, a avaliação autorrealizada contempla muito das reivindicações de cada Unidade, porque, depois que o relatório final ficou pronto, a Câmara de Avaliação Institucional visitou 53 unidades, discutindo as avaliações e ouvindo o que essas unidades tinham a dizer sobre o processo. Essa foi uma realização muito importante porque institucionalizou a avaliação na Universidade, que sempre foi um tema muito controvertido.

O atual processo de avaliação teve inspiração anterior?

Eu me lembro que a avaliação começou na época da gestão do professor José Goldemberg [reitor da USP no período de 1986 a 1990]. Era um processo imbuído de perspectivas altamente interessantes, porque era o momento da redemocratização do Brasil. Se a gente olhar para o projeto do professor Goldemberg, havia uma relação entre a avaliação da Universidade e os processos de redemocratização desse país. E é claro que havia, também, uma perspectiva da própria gestão de tornar a USP não só uma instituição que buscava transparência nas suas atividades e, ao mesmo tempo, corrigir seus rumos para virar uma universidade cada vez mais aperfeiçoada. Mas, introduzir a avaliação na cultura uspiana sempre foi uma coisa muito complexa. No processo atual, a avaliação ficou totalmente institucionalizada. O resultado é a universidade se pensando, a universidade propondo suas diretrizes e as unidades abertas ao debate e à construção de planos de processos avaliativos quinquenais baseados em planos elaborados por elas próprias.

Na época do professor Goldemberg, a questão da avaliação estava muito atrelada à produtividade, não é? Houve até uma reportagem na Folha de S. Paulo sobre os docentes mais produtivos…

Foi muito interessante isso, porque os professores não estavam acostumados a fazer relatórios. Eu me lembro de um grande crítico literário que apareceu como improdutivo, porque ninguém fazia relatório dizendo “eu fiz isso, fiz aquilo”. E ele contava que, quando desceu de manhã para comprar um jornal na banca, o jornaleiro olhou para ele e falou: “Professor, que vergonha”. E ele era um dos grandes intelectuais brasileiros. Havia também, naquele momento, o início de uma cultura de buscar a transparência, já no bojo da redemocratização do país, depois de um período terrível. Era a ideia de que especialmente os órgãos públicos, que vivem de impostos, precisam prestar contas para a sociedade. Por isso, quando a gente fala que temos que discutir a missão da Universidade, seus valores, seu planejamento — um exercício absolutamente necessário —, temos que partir da compreensão da realidade da universidade, que se dá a partir do debate nas unidades. E isso foi realizado por essa avaliação. Nós temos múltiplas compreensões, porque a universidade é muito diversa. Existem consensos e, por vezes, tensões, e a avaliação tem permitido construir coletivamente esse planejamento. O desenho assumido pela USP a partir dessa avaliação e das propostas que daí derivam passa necessariamente por uma questão que está presente na nossa cultura, que é a questão da autonomia.

Pensar a avaliação e o planejamento de uma instituição como a USP, com todas as suas especificidades, é muito diferente de pensar esse mesmo processo em uma empresa, não?

Muito diferente. Até porque os objetivos são diferentes. Não se pode pensar em um formato de avaliação sem ter em mente do que trata o que está sendo avaliado. O que nós estamos avaliando? Uma instituição de ensino, pesquisa, de produção da ciência, do conhecimento, da cultura, da inovação, e que está passando por profundos processos de mudança em função das questões que têm sido postas para as universidades hoje. E o que, em última instância, define uma empresa? Uma empresa é definida pela produção, pela acumulação do lucro; não é o caso de instituição pública. O que nos define é um conjunto de valores construídos a partir da vivência, da condição de instituição pública produtora de ciência, de conhecimento e de formação qualificada das novas gerações. São valores muito diversos. Por isso, é muito difícil transportar modelos. O planejamento institucional não se realiza se você não tiver em conta o que se pretende com aquilo e qual é a natureza das coisas. Isso é basilar na sociologia. É a primeira regra do método de Emile Durkheim, um dos fundadores da sociologia: só se comparam fenômenos da mesma natureza. Não dá para comparar fenômenos de natureza diversa.

A Universidade tem uma função crítica que não pode ser deixada em segundo plano.

Não pode. A ciência, no fundo, é isso. O que é a ciência e o que nos leva a fazer pesquisa? É a inconformidade com os dados. Se não for assim, não se faz ciência. É dever da universidade não repetir o que é percebido externamente, porque senão seria uma relação mimética com o mundo. E, então, não seria necessário fazer pesquisa. Se quiser avançar, a universidade não pode ter uma relação de aderência ao mundo; ela tem que ter algum afastamento, pensar criticamente. Hoje, a USP está entre as grandes universidades do mundo, tendo exercido funções que jamais foram esperadas das grandes universidades mundiais. O caso específico da USP no momento é muito interessante e importante, porque as universidades brasileiras sempre tiveram uma função civilizatória inclusiva; quer dizer a educação como forma de dirimir desigualdades, de formar elites dirigentes. Sem contar o caso mais específico que vivemos até recentemente, de ataque à ciência, de ataque às universidades. A Universidade foi praticamente um dos últimos guardiões contra essa onda obscurantista e regressiva que aconteceu no Brasil nos últimos anos. E a USP, uma das mais importantes universidades brasileiras, teve e tem um papel central na garantia desses valores. Por isso, o programa que levou à escolha da gestão atual tinha uma afirmação peremptória: a Universidade tem que ser um grande laboratório da vida social brasileira. Éramos obrigados a isso, não só para manter nossa autonomia e nossos valores, mas por causa do nosso compromisso público, porque somos uma instituição pública. E esse processo de transformação da Universidade de São Paulo estava previsto naquela carta programa. Era, então, o que nos restava. Caso o resultado das eleições [presidenciais] tivesse sido outro, tenho certeza de que correríamos o risco de ter professores afastados. Olha o que aconteceu com o Inpe e com tantas outras instituições. Então, a Universidade preservou seu caráter, sua missão e sua autonomia diante disso. Isso mostra que nossa autonomia é fundamental, que nós não somos empresas; o que não quer dizer que não podemos ter todo um processo de racionalidade, de planejamento. Nós temos que planejar, sim, saber quais são os nossos passos, mas o fim não é uma razão prática, é uma razão baseada em valores.

O afastamento do qual a senhora fala é fundamental para a autonomia da Universidade…

Esse afastamento é necessário. Sem ele, você não pensa criticamente o mundo e não produz conhecimento. O que não nos exime de participar e de colaborar com as pautas civilizatórias, com o debate público, com a proposta de políticas. Mas são coisas de ordens distintas, isso não se faz diretamente, se faz por meio de mecanismos mediadores, que são a garantia da autonomia, a garantia daquilo que nos define. O processo de planejamento, os planos que são feitos, é importante ter uma racionalidade nisso, é uma razão prática, mas o objetivo é um valor, é a missão da Universidade, é o valor da produção da ciência, da formação qualificada, da autonomia como forma de pensamento. Sem isso não se produz conhecimento.

A função da Universidade pública deve ser pensar o desenvolvimento de uma sociedade que sirva a todos?

A Universidade não pode servir a nenhum senhor. Ela tem que ter uma visão geral, universalista das questões, e isso só é possível ser atingido quando se tem a prudência da ação — para lembrar Aristóteles —, que envolve uma virtude particular. É quem dá a boa medida é esse afastamento dado pela autonomia, pela pesquisa, pelo conhecimento. E que permite que a Universidade faça perguntas que ninguém mais faz.

Olhando um pouco para frente, de que forma essa avaliação vai ajudar no planejamento estratégico na USP?

Dessa avaliação, do encontro com as unidades, nós vamos fazer um seminário, previsto pela Câmara de Avaliação Institucional. Um conjunto de “desejos” e de propostas que vêm das unidades, que está sendo consolidado, foi derivado da avaliação. E, aqui, temos a expressão da comunidade uspiana, porque quando fomos às unidades, não falamos só com o diretor, mas com a congregação, com as representações de professores, funcionários e alunos, toda uma comunidade presente. O que se promoveu, no fundo, foi um amplo processo de escuta e recepção de demandas de cada unidade, da comunidade uspiana. Esse amplo processo de escuta tem como expectativa a construção de um projeto acadêmico para a Universidade de São Paulo, mas que ele brote do chão para o topo. Porque, se for ao contrário, nós contornaríamos o valor supremo da Universidade que é a autonomia. E isso está previsto na resolução 7272, sobretudo no artigo 24 e na oitava recomendação, que diz que a integração entre os projetos acadêmicos da unidade das unidades e o projeto acadêmico da Universidade — quer dizer, o planejamento da Universidade — se dará pelo processo de aprovação pela Câmara da Avaliação Institucional, porque ela é o guarda-chuva da avaliação. É um órgão altamente representativo. Portanto, não é só competência da Universidade, mas também os projetos acadêmicos das unidades não estão alheios a isso. E isso é a garantia da autonomia.

Esse projeto acadêmico fortalece a Universidade?

Fortalece a Universidade e fortalece a autonomia da Universidade. E a autonomia não é só da instituição, mas do docente, que faz seu plano indicando qual a ênfase que pretende dar: se na sala de aula, na pesquisa ou até mesmo na gestão. E ele será avaliado a partir daí. É por isso que essa avaliação institucional é tão importante: pelo modo como foi realizada e porque dela brotam projetos para a USP se avaliar e propor o que precisa corrigir.


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